A CULTURA INQUISITÓRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO

1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS: UMA ANÁLISE DA GESTÃO PROBATÓRIA

Primeiramente, é importante esclarecer o significado da palavra “sistema” para compreender a noção de processo. O seu significado gira em torno de um conjunto de princípios e ideias interligados que abrangem uma área determinada do conhecimento (NETO, 2012).

Todavia, essa é uma concepção simples do significado de sistema, sobretudo, do sistema jurídico, a qual nos propusemos a trabalhar.

Na concepção de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (1998), a análise do sistema processual passa pela ideia do princípio unificador, compreendido como um conjunto de preceitos e características que juntos formam um conceito jurídico único, destinado a uma determinada finalidade.

Assim, para a compreensão do Direito Processual Penal é necessário o estudo dos sistemas processuais, entres eles estão: o inquisitório e o acusatório.

Salienta-se ainda que grande parte da doutrina reconhece a existência de um terceiro sistema, fundado na junção dos dois primeiros sistemas, formando uma espécie de sistema híbrido, todavia, não será trabalhado neste artigo.

        O que importa nesse primeiro momento é saber como se dará a compreensão de um sistema. Segundo o Autor, não existem sistemas processuais penais puros, pois os modelos puros são modelos históricos, sendo certo que todos os modelos são mistos. Contudo, no que pese não existir mais sistemas puros, não nos leva a crer que possa existir um sistema misto, pois mistos todos são. O que deve ser levando em consideração é o princípio unificador, pois na essência o sistema é sempre puro (COUTINHO, 1998).

Dessa forma, o sistema processual penal é trabalhado sob óptica de dois princípios unificadores, quais sejam, inquisitivo e dispositivo. Eles se diferenciam pelo critério de gestão da prova. Isso porque o princípio inquisitivo tem como principal característica a concentração de poder nas mãos do juiz, a qual atua ativamente na produção de provas. Por sua vez, no princípio dispositivo a gestão da prova está nas mãos das partes, e o juiz tem uma participação passiva na busca de provas, sendo inerente à atividade jurisdicional apenas julgar o caso concreto com base nas provas produzidas pelas partes em contraditório judicial (COUTINHO, 1998).

Portanto, percebe-se que a adoção de um sistema ou outro leva em conta um conjunto de princípios e características que, juntos, formam um princípio unificador do sistema processual, e a depender do sistema esse princípio pode ser o inquisitivo ou o dispositivo.

1.1 Sistema Inquisitório

O sistema inquisitório tem origem na velha Roma, período em que o magistrado era responsável pela repressão do crime, sendo-lhe atribuída a tripla função de investigar, acusar e julgar os delitos que chegassem ao seu conhecimento. Com isso, o magistrado tinha plenos poderes instrutórios para resolver o crime com bem quisesse.

 O marco de consolidação do sistema inquisitório foi após o fim do Império Romano, com a ascensão do cristianismo como religião oficial. Segundo José de Assis Neto, “durante a idade média, a inquisição foi utilizada como instrumento de combate à diferença religiosa, ao poder econômico e ao conhecimento científico […]”, criando as chamadas doutrinas heréticas. Assim, qualquer pessoa que fosse contra os dogmas da Igreja naquela época era repreendida (NETO, 2011, p.70).

Anota Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2015), que as primeiras manifestações do sistema inquisitório se deram quando o Papa Inocência III equiparou os crimes de heresia aos crimes de lesa-majestade, o mais grave dos crimes existente naquela época. Assim, aos poucos esse sistema foi se consolidando, com a criação dos Tribunais da Inquisição, momento em que as doutrinas heréticas ganharam corpo jurídico, com a Constitutio Excomuniamus (1231), do Papa Gregório IX, consolidando-se efetivamente com a Bula Ad extirpanda, de Inocência IV (1252).

Nessa época, o objetivo dos Tribunais da Inquisição não era pautado apenas na punição dos hereges, mas na sua conversão para os dogmas da Igreja Católica (NETO, 2011). Na ocasião, cabia a inquisidor acusar e julgar, sendo que o acusado era considerado mero objeto do processo. Daí se diz que nesse sistema não existe a ideia de partes.

Ademais, o acusado de heresia não tinha direito defesa, tendo em vista que a defesa tinha compromisso somente com a religião, e não com o acusado. Em raros momentos em que era possível ter um defensor, este atuava no sentido de conseguir que o acusado de heresia se arrependesse e confessasse o crime pela qual era acusado (NETO, 2011). É possível verificar então a completa ausência de defesa, pois o defensor quando presente acabava por contribuir com a acusação.

Esse sistema pendurou-se por muitos anos, ultrapassando os limites da religião, momento em que se firmou com o surgimento dos primeiros Estados Modernos (século XIII e XIV), marcando o início do sistema inquisitório na Justiça Laica, que se deu devido ao fortalecimento das monarquias absolutistas e a centralização do poder político do Estado (NETO, 2011).

Por conseguinte, podemos definir algumas características do sistema inquisitório.  A característica fundamental desse sistema é a gestão da prova, conferida ao magistrado que, de modo geral, tem ampla iniciativa probatória.

Conforme anota Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, essa estrutura de processo oferecia certa vantagem, uma vez que o magistrado poderia facilmente descobrir a verdade dos fatos, pois estava ligado diretamente com os atos de investigação (COUTINHO, 2015). Aliás, esse sistema tem como premissa da atividade probatória a completa e ampla reconstrução dos fatos, por isso, permitia que o acusado fosse torturado para que se obtivesse uma confissão (LIMA, 2017).

Ademais, segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, existem outras características, classificadas como secundárias. Assim, são características secundárias do sistema inquisitório: a centralização do poder em uma única pessoa, chamado de juízo inquisidor; o processo é secreto e escrito; a prova é tarifada; o acusado é mero objeto do processo (COUTINHO, 2015).

Notavelmente, a concentração das funções na mão do juiz compromete sua imparcialidade. Portanto, no sistema em que o juiz atua como acusador e ao mesmo tempo como julgador, o provimento final certamente estará comprometido, haja vista as dificuldades em que o juiz enfrenta para se distanciar psicologicamente dos fatos enquanto exerce ambas as funções.

Além do mais, como já dito anteriormente, não existia a noção de partes e o acusado era mero objeto do processo, não há que se falar então na existência do contraditório, até porque o acusado não tinha direito de defesa.

Mediante o exposto, percebe-se que o juiz no sistema inquisitório tinha participação ativa no processo penal, devido ao seu poder de instrução e à concentração das funções de acusar e julgar, o que o tornava ainda mais parcial, prejudicando o acusado.

1.2 Sistema acusatório

O sistema acusatório é considerado por grande parte da doutrina como o primeiro sistema existente na história da humanidade. Alguns autores apontam sua origem no Direito Grego, haja vista a participação direta do povo na função de acusador e julgador.

 Aury Lopes Júnior diz que nesse período “vigorava o sistema de ação popular para os delitos graves […]”, pois a acusação poderia ser exercida por qualquer pessoa. Já os delitos de menor gravidade eram patrocinados por acusação privada, de acordo com as normas do Direito Civil (LOPES JÚNIOR, 2011, p. 52).

No Direito Romano da Alta República surgiram duas formas de processo penal: cognitio e a accusatio.

A cognitio concedia poder de instrução para o magistrado, podendo este esclarecer os fatos na forma que bem entendesse. Dessa forma, o magistrado concentrava os poderes de investigar, acusar e julgar, guardando íntima relação com o sistema inquisitório. Todavia, nos últimos séculos da república esse procedimento passou a ser desprezado, pois não previa muitas garantias e era uma poderosa arma política na mão dos magistrados (LOPES JÚNIOR, 2011).

A accusatio foi responsável por grandes mudanças no Direito Processual Romano, nela a acusação era exercida por um cidadão do povo e, quando se tratava de delicta publica, a acusação era realizada por um órgão distinto do juiz, que não pertencia ao Estado, era um representante da coletividade (LOPES JÚNIOR, 2011).

Nessa linha, aponta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho que o processo penal inglês “nasce como um autêntico processo de partes […]”, haja vista a completa separação das funções de acusar, julgar e defender. Assim, o processo é estabelecido em contraditório, momento em que as partes se contrapõem em local público na frente de um juiz que está em posição passiva, longe da colheita da prova (COUTINHO, 2015).

Quanto à gestão da prova, percebe-se que o juiz não é mais dotado de ampla iniciativa probatória, devendo manter-se imparcial e equidistante. Sua função é gerir o processo, verificando se as regras do jogo estão sendo respeitadas, de modo a resguardar os diretos fundamentais, principalmente, o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência (LIMA, 2017).

No processo acusatório o ônus da prova incumbe às partes, cabendo somente a elas apresentarem as provas colhidas licitamente em contraditório judicial. Ademais, o acusado é visto com sujeito de direito, pois pode se defender em questão de igualdade em relação à acusação, recaindo sobre ele a presunção de inocência. A regra, neste caso, é que acusado permaneça solto durante o processo, não devendo ser submetido a nenhum tipo de tortura em busca da verdade que, por sinal, deve prevalecer a ideia de verdade processual, visto que no sistema acusatório a verdade é construída dentro do processo, através dos fatos e provas levado ao conhecimento do juiz pelas partes (NETO, 2011).

Segundo José de Assis Neto, “somente o sistema acusatório poderá ser considerado um sistema processual, enquanto o inquisitório será mero procedimento, não podendo, portanto, ser considerado um modelo processual” (NETO, 2011, p.79). Pois, como já vimos, não existe processo sem ampla garantia do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da presunção de inocência.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2015) aponta outras características como elemento secundário do sistema acusatório, como o julgamento por assembleia ou jurados populares; a equidade entre as partes; o juiz árbitro, sem qualquer poder de iniciação da investigação; os delitos públicos são de ação popular e os delitos privados são iniciativa do ofendido; o processo é oral, público, com prevalência do contraditório; a prova é avaliada pela livre convicção motivada; a sentença faz coisa julgada; e o acusado, em regra, deve ser mantido solto, haja vista a presunção de inocência.

Com a evidente separação das funções entre o juiz e as partes, estas ficam responsáveis pela gestão da prova, garantindo a imparcialidade do juiz. Somente no processo acusatório, no qual o juiz mantém equidistância dos atos instrutórios, é que teremos um juiz imparcial (LOPES JÚNIOR, 2015).

 

2. A GESTÃO DA PROVA PELO JUIZ É UMA EVIDENTE VIOLAÇÃO AO SISTEMA ACUSATÓRIO

2.1 Considerações iniciais sobre a prova: o mito da verdade real

A palavra prova tem a mesma origem etimológica de probo (do latim, probatio e pronus). Dela deriva o verbo provar, que significa verificação, exame, demonstração que uma afirmação ou um fato tem seu valor, estando relacionado com a busca de um conhecimento verdadeiro.

No âmbito jurídico, a prova tem por objetivo a reconstrução do fato no processo penal, buscando cada vez mais se aproximar da realidade pretérita, isto é, da verdade dos fatos. Reconstruir essa verdade é um trabalho árduo, para não dizer impossível, tendo em vista as dificuldades em estabelecer uma verdade ocorrida em tempo e espaço distintos (OLIVEIRA, 2014).

Por sua vez, Aury Lopes Júnior diz que “o processo penal é um instrumento de retrospecção, de reconstrução de um determinado fato histórico”. Assim, a prova é o meio pelo qual se realiza a reconstrução do fato passado visando o convencimento do juiz sobre a veracidade das alegações trazidas pelas partes. (LOPES JÚNIOR, 2011, p. 511).

A prova pode ser dividida em três aspectos: a prova como atividade probatória, a prova como resultado e a prova como meio. A prova como atividade probatória diz respeito aos meios e atos praticados no processo objetivando o convencimento do juiz sobre a veracidade de uma alegação. Já a prova como resultado leva em conta a formação da convicção do juiz sobre a existência de um fato, sendo que é através da atividade probatória que se formará um determinado grau de certeza acerca de um fato. Por fim, a prova como meio é o instrumento adequado à formação da convicção do juiz sobre a existência de um fato (LIMA, 2017).

Logo, a prova pode ser conceituada como um elemento de convicção produzida, em regra, no curso do processo, a qual se destina à formação do convencimento do juiz sobre um determinado fato pretérito, de modo que se aproxime ao máximo de uma verdade.

Entretanto, devemos ter certo cuidado ao falar da prova como reconstrução do fato pretérito em busca da verdade, pois, como já vimos, durante muito tempo o direito pautou-se na busca da verdade absoluta, levando à utilização de diversos métodos e formas jurídicas na obtenção da verdade, como a tortura, na qual o acusado era submetido a tratamentos desumanos, causando graves lesões à sua integridade física e psicológica, tudo isso legitimado pela busca de uma verdade posteriormente chamada de verdade real (OLIVEIRA, 2014).

Com a valorização do homem, o acusado passou a ser reconhecido como sujeito de direito e a integrar o polo passivo da ação penal. Nesse momento, a acusação é submetida ao contraditório, e a verdade é construída dentro do processo, com todas as garantias constitucionais do devido processo legal. Isso faz com que a convicção do juiz seja fundamentada em uma verdade processual.

Portanto, por mais difícil e imperfeito que seja a reconstrução do crime enquanto fato histórico, este é um compromisso irrenunciável da atividade jurisdicional. Dessa forma, o processo penal deve buscar uma verdade processual, e uma vez que a decisão tenha transitado em julgado, prevalecerão todos os efeitos da coisa julgada.

Segundo Eugênio Pacelli, a decisão proferida no bojo do processo produz “[…] uma certeza do tipo jurídica, que pode ou não corresponder à verdade da realidade histórica, mas cuja pretensão é a de estabilização das situações eventualmente conflituosas” (OLIVEIRA, 2014. p. 328). Certamente, existem vários meios e métodos de prova para que o juiz possa se aproximar o máximo possível da realidade dos fatos.

2.2 Prova cautelar, não repetível, antecipada e o poder do juiz de valoração dos elementos de prova colhida na fase de investigação

De acordo com o art. 155 do CPP, o juiz poderá formar sua convicção com base nas provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, ainda que tenha sido colhida na fase de investigação.

Provas cautelares são aquelas em que há o risco de desaparecimento do objeto da prova em razão do decurso do tempo. Essa prova pode ser colhida tanto na fase investigativa quanto na fase judicial e, em regra, depende de autorização judicial, sob pena de nulidade. Quando colhida na fase investigativa, o contraditório será diferido, postergado ou adiado. Um exemplo de prova cautelar é a interceptação telefônica, que conta como eficácia do meio utilizado na obtenção do elemento de prova a surpresa. Sendo assim, o contraditório será realizado em um momento posterior à realização da diligência, momento em que a prova já estará documentada nos autos do inquérito policial (LIMA, 2017).

Provas não repetíveis são aquelas que, pela sua própria natureza, devem ser colhidas no momento em que a autoridade policial toma conhecimento do fato, sob pena de desaparecimento, destruição ou perecimento da fonte de prova. Aliás, essa não depende de autorização judicial, e pode ser colhida na fase investigativa ou judicial. Assim, devido ao perigo no desaparecimento da fonte de prova em relação aos fatos transeuntes, o art. 6º, inciso VII, do CPP, dispõe que a autoridade policial deverá determinar o exame de corpo de delito e outras perícias no exato momento em que tiver conhecimento da prática da infração penal. Salienta-se ainda que o contraditório será diferido em relação às provas não repetíveis (LIMA, 2017).

Por sua vez, as provas antecipadas são aquelas produzidas antes de iniciar o processo, em razão de uma situação de urgência e relevância, que justifique a antecipação dos atos de instrução (LIMA, 2017).

Essa medida foi uma forma em que o legislador encontrou para jurisdicionalizar as provas produzidas na fase de investigação, permitindo que os elementos informativos tenham valor de prova no processo penal. Isso significa que os elementos informativos produzido na fase de investigação como mero ato de informação não terão necessidade de ser repetido na fase processual, uma vez que devem ser observados todos os requisitos formais que lhe permitam ser considerado prova (LOPES JÚNIOR; GLOECKNER, 2014).

É o que ocorre, por exemplo, com o art. 225 do CPP, que dispõe que o juiz pode, antecipadamente, tomar o depoimento de testemunha que houver de se ausentar, ou, por enfermidade ou por velhice, não exista ao tempo da instrução criminal. Oportunamente, destaca-se que o legislador perdeu a chance, com a reforma de 2019, de melhorar este instituto, implementando de forma efetiva o contraditório e a ampla defesa.

Outro exemplo diz respeito à possibilidade de produção antecipada da prova, quando o acusado for citado por edital, não comparecer em juízo, nem constituir advogado, e o juiz considerar a prova urgente (CPP, art. 366). Todavia, essa medida deve ser excepcional e a sua decretação deve ser feita de forma fundamentada, tendo em vista que a inquirição de testemunha, por si só, não constitui prova urgente, e as alegações sobre os limites da memória não são suficientes para determinar tal medida (LIMA, 2017). Inclusive, a súmula n.º 455 do STJ dispõe que “a decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo” (BRASIL, 2010). Assim, a produção antecipada da prova só pode ser admitida em casos extremos, em que se demonstre de forma cabal que seria inviável a sua posterior repetição na fase processual da prova.

Dentro deste contexto, é importante nos perguntarmos como é feita a valoração dos elementos de provas produzidos antes de iniciar o processo? (ou seja, na fase pré-processual). A valoração da prova se dará pelo livre convencimento motivado ou persecução racional, conforme dispõe o art. 155 do CPP. Entretanto, antes de adentrar nesse tema é importante fazer algumas ponderações sobre os outros sistemas de valoração de prova, quais sejam: sistema legal de provas e íntima convicção do magistrado.

No sistema legal de prova ou prova tarifada o legislador fixa em abstrato o valor da prova, cabendo ao juiz apenas e tão somente analisar o conjunto probatório e lhe atribuir o valor conforme estabelecido na lei. Esse sistema é baseado no modelo inquisitório, onde a confissão era considerada a rainha das provas, pois era a que tinha valor superior em relação às demais. Por isso, as práticas de tortura eram tão comuns no modelo inquisitório, pois visava obter uma confissão do acusado (LOPES JÚNIOR, 2011).

Por outro lado, no sistema de íntima convicção o juiz é livre para valorar as provas, não sendo preciso fundamentar sua decisão. Em regra, tal sistema não foi adotado em nosso ordenamento pátrio, pois segundo o art. 93, inciso IX, da CF, todas as decisões dos órgãos do poder judiciário serão fundamentadas, sob pena de nulidade. Todavia, há uma exceção na Constituição Federal no que diz respeito ao tribunal do júri, segundo o qual é assegurado aos jurados o sigilo das votações, conforme dispõe o art. 5, inciso XXXVIII, da CF. Isso representa um retrocesso ao direito penal do autor, visto que o jurado pode votar de qualquer forma, a julgar pela cor, raça, posição sexual, aparência, postura do réu, etc., sem necessidade de fundamentar o seu veredicto (LOPES JÚNIOR, 2011).

Conforme mencionado anteriormente, o Código de Processo Penal adotou o sistema de livre convencimento motivado, também conhecido como persecução racional. Esse sistema concedeu ao juiz a liberdade de valoração das provas, desde que sua decisão seja fundamentada com base nas provas produzidas em contraditório judicial.

É preciso analisar o alcance da liberdade que o juiz tem para formar seu convencimento. A liberdade diz respeito à não submissão do juiz a fatores políticos, econômicos, ou até mesmo da vontade da maioria. Assim, a liberdade do juiz para valorar as provas não decorre de um consenso, mas sim da democracia substancial, sendo certo que o seu papel é de guardião da eficácia do sistema de garantia da Constituição Federal (LOPES JÚNIOR, 2011).

Por outro lado, no aspecto jurídico-processual, a liberdade de valoração da prova não é plena. Por mais que o juiz não fique vinculado à opinião da maioria, ele não pode proferir uma decisão que reflita somente sua opinião, substituindo uma prova em sentido jurídico por uma prova em sentido moral, como, por exemplo, se o juiz fizesse um juízo de valor ou desvalor sobre o acusado (LOPES JÚNIOR, 2011).

Assim, é crucial o princípio da fundamentação das decisões, pois limita os juízos morais por parte do julgador e permite que a defesa faça um controle dos atos excessivos cometidos pelo juiz, de modo que a decisão reflita o mais próximo da verdade corroborada pelas provas produzidas nos autos do processo.

Mas não nos enganemos. Como anota Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, o art.156 […] “desmente a mera impressão que desavisados podem ter com o novo preceito do art. 155” (COUTINHO, 2009. p. 227). Isso porque o art. 156 do CPP permite que o juiz ordene a produção de provas na fase de investigação. Mas, por outro lado, o art.155 do CPP exige que o juiz forme seu convencimento somente nas provas produzidas em contraditório judicial, o que a nosso ver parece ilógico, tendo em vista todas as dificuldades em que o juiz encontra em se desvencilhar dos juízos de valor formado com seu prévio contato com a causa, rompendo com a garantia da imparcialidade.

Então, é possível burlar a sistemática da livre apreciação da prova, haja vista que, geralmente, primeiro o juiz decide para depois fundamentar.

Dessa forma, o juiz pode decidir com base nas provas produzidas na fase investigação e depois corroborar seu convencimento com as demais provas produzidas em contraditório judicial. Certo é que antes da sentença o juiz já decidiu se condenará ou absolverá o réu, no entanto, sabe o juiz que tal postura não é aceita no ordenamento jurídico, por isso a fundamentação é revestida de uma roupagem jurídica e tecnicamente legítima (COUTINHO, 1998).

Portanto, percebe-se que o juiz não é uma figura neutra e tampouco se tornará, caso a lei persista em lhe outorgar atos próprios de “partes”.

2.3 Desmitificando a distribuição do ônus da prova no processo penal: a acusação é quem deve suportar a carga da prova

Segundo o art. 156 do CPP, “a prova da alegação incumbirá a quem o fizer […]” (BRASIL, 1941), sendo assim, é dever da acusação provar que alguém praticou um fato típico, ilícito e culpável, até mesmo porque incide sobre o acusado o status de inocente, logo, não é dever dele provar que é inocente, e sim, do Estado, por meio do seu órgão de acusação (Ministério Público).

Assim, segundo Aury Lopes Júnior, “a acusação tem a carga de descobrir hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de contradizer com a contra hipóteses e contraprovas”. Nessa situação, o juiz deve analisar todas as hipóteses e, ao final, deve optar pela hipótese da acusação somente se estiver provada e, não optando por esta, se desmentida, ou não restar provas suficientes para auferir um juízo de culpa do acusado (LOPES JÚNIOR, 2011, p. 525).

 

Essa parte final retrata o princípio do in dubio pro reo, segundo o qual restando dúvida sobre a existência de prova suficiente para formular um juízo de certeza sobre a autoria e materialidade do crime, deve o juiz absolver o réu, tendo em vista a insuficiência das provas, pois um erro que condena aquele que genuinamente é inocente parece ser mais grave do que um erro que absolve aquele que é considerado culpado.

 

É importante salientar ainda que no processo penal não há distribuição do ônus da prova, tal qual ocorre no processo civil. Sendo certo que a carga da prova está inteiramente com a acusação, não só porque a primeira afirmação é feita na denúncia, mas também porque sobre o réu recai o status de inocente (LOPES JÚNIOR, 2011).

 

O que ocorre no processo penal é assunção de riscos. Assim, quando é facultado ao acusado fazer prova da sua alegação e ele não faz, não há prejuízo algum no seu comportamento, mas apenas a perda de uma chance de demonstrar que ele não era culpado. Nesse caso, assume o risco presente na perda de uma chance, logo, assume o risco de uma sentença desfavorável à defesa. Um exemplo comum disso é do direito ao silêncio, segundo o qual o acusado tem o direito de ficar calado, de tal sorte que seu comportamento não resultará prejuízo algum. Todavia, é evidente que ele perdeu uma chance de se declarar inocente e capturar o convencimento do juiz, trazendo provas que corrobora sua alegação, sendo assim, assumirá os riscos de uma sentença condenatória (LOPES JÚNIOR, 2011).

 

Outro ponto importante e que merece a nossa atenção diz respeito ao grave erro cometido pela doutrina ao alegar que cabe à defesa provar uma excludente. Ora, a carga de provar que a autoria e a materialidade são atribuídas ao acusado é sempre da acusação, de modo que se há existência de uma causa de excludente, não é tarefa da defesa demonstrar que essa excludente existiu, e sim dever de a acusação provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade, isto é, a inexistência das causas excludentes (LOPES JÚNIOR, 2011).

Desta maneira, o processo penal inicia com uma imensa carga probatória para acusação, tendo em vista a presunção de inocência e ônus de provar o alegado. Com o desenrolar do processo cabe à acusação o dever de superar a presunção de inocência do acusado. À medida que a acusação vai obtendo êxito no processo, ela vai se liberando dessa carga, até superar por completo o status de inocente do acusado com a sentença condenatória (LOPES JÚNIOR, 2011).

Em síntese, o artigo 156 do Código de Processo Penal atribui à acusação o encargo de provar as alegações, respeitando o pressuposto da presunção de inocência conferido ao acusado. A análise crítica proposta por Aury Lopes Júnior reforça a importância da carga probatória exclusiva da acusação, destacando que no processo penal não há distribuição do ônus da prova como no processo civil. A aplicação do princípio do in dubio pro reo ressalta a necessidade de certeza na comprovação da autoria e materialidade do crime, evitando assim erros que resultem na condenação de inocentes. Em última instância, o processo penal representa uma sequência de etapas em que a acusação assume gradualmente a responsabilidade de superar a presunção de inocência do acusado, culminando na sentença condenatória quando devidamente fundamentada.

3. INICIATIVA PROBATÓRIA: a gestão da prova pelo juiz e o sistema processual penal brasileiro

Embora a Lei n.º 13.964/2019 tenha feito importantes alterações na legislação processual, restando consolidado a obrigatoriedade da separação de funções de acusar, defender e julgar, com o Ministério Público responsável, privativamente, por patrocinar a ação penal pública, ainda não superamos a cultura inquisitória do Código de Processo Penal.

Pela primeira vez na história, o legislador consagrou uma estrutura triangular, com acusação, defesa e o juiz como terceiro imparcial. Este, por sua vez, está na posição de órgão “super partes”, isto é, está para além dos interesses das partes e, logicamente, para além dos seus interesses particulares.

De acordo com o art. 3º-A, do CPP, o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Com essa atualização legislativa, toda doutrina crítica e constitucionalmente comprometida afirmava que o artigo 156 e todos aqueles que permitiam a postura inquisitória do juiz, produzindo provas de ofício, estavam tacitamente revogados, todavia, o que fez o STF? Em síntese, o STF concluiu que o sistema é acusatório, mas permitiu que o juiz, dentro dos limites previstos legalmente, possa ordenar a produção de provas de ofício para esclarecer dúvidas relevantes para a decisão. E quais são esses limites autorizados por lei? Eles estão estabelecidos no CPP, notadamente no artigo 156 que tem sido alvo de críticas persistentes (LOPES JÚNIOR, 2023).

O STF, no julgamento das ADIs nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, em 24/8/2023, fixou entendimento no sentido de atribuir interpretação conforme ao art. 3º-A do Código de Processo Penal (CPP), incluído pela Lei nº 13.964/2019, “para assentar que o juiz, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, pode determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito”.

É importante observar desde já que a falta de provas constitui motivo para absolvição (CPP, artigo 386, VII). Logo, se o “mérito” é a hipótese acusatória, o movimento judicial “para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento de mérito” somente aproveita a acusação. Quando faltarem provas, o órgão julgador abandona o lugar de terceiro, adentra ao campo probatório em reforço à acusação, pegando a defesa de surpresa, com o consequente desequilíbrio de tratamento igualitário e/ou de paridade de armas (LOPES JÚNIOR, 2023).

Tal postura do órgão julgador acaba por esvaziar o próprio sentido do princípio do in dubio pro reo, à medida que a dúvida constitui motivo para permitir a atuação ex officio do juiz na produção de provas consideradas relevante para o julgamento de mérito. Ora, se ao final do processo, depois de toda atividade probatória do MP [detentor exclusivo da carga de provar, pois a defesa não tem carga probatória alguma, diante da presunção de inocência] não houver prova suficiente, robusta e acima de qualquer dúvida razoável da materialidade e autoria de um crime, não deve(ria) haver outro caminho que não a absolvição. Se o juiz estiver em dúvida, deve aplicar o in dubio pro reo, critério constitucional e pragmático de solução (LOPES JÚNIOR, 2023).

No sistema acusatório é assim. Mas o STF transforma uma brilhante alteração legislativa em um fracasso, mantendo a essência do princípio inquisitivo, uma vez que a figura do juiz-instrutor não foi completamente extirpada do processo penal, pois este ainda possui poder de gestão da prova. 

Conclui-se, portanto, que estamos diante de um sistema neoinquisitório, isto é, um inquisitório reformado, tendo vista que o sistema inquisitório puro é um modelo histórico, sem referência no mundo contemporâneo.

A solução reside em superar a cultura inquisitória do Código de Processo Penal Brasileira, retirando do juiz a faculdade de determinar, por iniciativa própria, a produção de provas, tanto na fase investigativa quanto na fase judicial, sob o pretexto de tirar dúvidas sobre pontos relevantes na formação do seu convencimento.

Quando tal mudança ocorrer, estaremos diante de um sistema claramente acusatório, no qual as partes assumem o papel de protagonistas.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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[3] LOPES JR. Aury. Direiro Processual Penal. 12 ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.

[4] LOPES JR. Aury. Direiro Processual Penal. 12 ed. – São Paulo: Saraiva, 2023.

[5] LOPES JR. Aury; GLOECKNER. Ricardo Jacobsen.  Investigação preliminar do processo penal. 6 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014.

[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8 ed. rev., ampl. e atual. – Rio de Janeiro: Lumen Jures, 2011

[7] LIMA. Renato Brasileiro de.  Manual de Processo Penal: volume único. 5 ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: JusPodivm, 2017.

[8] NETO. José de Assis Santiago. Estado democrático de direito e processo penal acusatório: participação dos sujeitos no centro do processo do palco processual. Belo Horizonte, 2011. Disponível em: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_NetoJAS_1.pdf. Acesso em 23 de set. 2019.

[9] OLIVEIRA. Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18 ed. rev. e ampl. atual. – São Paulo: Atlas, 2014.

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